* ACORdo OrtoGrafico : o sentido das palavras

A COR DO ORTO GRAFICO - sobre o Dito ACORDO ORTOGRÁFICO

É com as palavras que nos expressamos. Nelas encontramos o corpo, a forma do que dizemos, o modo do que sentimos, a evidência para cada gesto, o grito e o frémito de cada emoção. Por isso a procura eterna e quase utópica da palavra certa, da palavra exacta, que diga, ela própria, o tudo que nela colocamos, para que diga, por si, o que queremos dizer, na fidelidade possível do que sentimos.

A palavra tem esse segredo. Esse mistério. De ser corpo e mensageira do que, em cada instante, queremos transmitir ao outro. Com a raiva, com a força, com a ternura, com a exuberância, com a eloquência, com o medo, com a coragem, do que tem de ser dito.

As palavras não são inócuas, não são meros artefactos, não são objectos inertes, são signos, são modos de nós próprios, extensões de nós, o modo de sermos para os outros.

O vocábulo é uma melodia íntima, que uma vez dito, tem o encanto de uma sinfonia.

Usamos as palavras, como modos perfeitos do dizer, do expressar, na escrita ou na oralidade, é por elas que comunicamos, nelas somos completos, com elas somos distintos, racionais, sensíveis, criativos,gente.

Só entende este lado das coisas, o cerne e a alma de cada palavra, quem lida com elas, com este entendimento e este sentido.

O nosso idioma é a pátria das palavras, o lugar em que tudo tem sentido, onde elas habitam.

Cada palavra é um sujeito. Tem identidade. Tem rosto, BI, ADN e uma lógica de vida.

Cada palavra contém uma significância, que vai para além da sua forma, do número de sílabas e vogais que pode ter.

E tantas vezes, quanto o sentido e o sentimento que lhe associamos, cada palavra é em si, o significado do que identifica, e nessa expressividade ganha vida própria.

As palavras não são por isso, objectos descartáveis, coisas para se dispor, para se amputar sentido, são seres vivos, que respiram a seu modo, que fazem parte de nós.

Quem lida com as palavras com este sentido, entende, particularmente os que compreendem essa magia e esse alvoroço do dizer, de tudo o que cada palavra é e pode ser.

E surgem agora mudanças. Sentenças radicais para as palavras.

O dito Acordo ortográfico, que pretende uniformizar a linguagem dos falantes lusófonos, dando a muitas palavras nova ortografia, destituindo-as do modo com que lhe reconhecíamos, esquecendo que não nos desabituamos das palavras e do seu sentido,apenas porque alguém assim o determina, subestimando a relação que desde sempre temos com cada uma das palavras, exactamente na forma com que elas se nos revelavam e não será num ápice que essas íntimas relações se podem alterar.

Agora mudam as palavras, por decreto. Retiram-lhe partes, omitem as consoantes ditas mudas, mas que integravam a palavra, davam-lhe identidade, era esse o seu modo, a sua forma, o seu corpo. Com elas, a palavra é plena.

E eis que dão às palavras outras formas que as desfiguram. Ficam outras de forma e rosto, pois que o sentido das palavras advém da sua forma de representação.

Entre tantos exemplos da desconformidade intelectiva, eis alguns :

ACTO não pode ser o mesmo que ATO. ACEPÇÃO não pode ser ACEÇÂO.RETRACTO não pode metamorfosear--se em RETRATO.VERÃO, das estações, não pode ser o mesmo que verão, verbo.CORRECTO não pode identificar-se como CORRETO. RECTO não pode ser RETO, assim não se distingue o reto do que é reto. AMNISTIA não é ANISTIA. O RAPTO nunca é RATO.

ICTERÍCIA não pode ser apenas ITERÍCIA. EJECTAR não é EJETAR.DIALECTAL nada tem a ver com DIALETAL, isso é para o dia de finados.ASPECTO não pode ser ASPETO. ESPECTADOR não pode ser ESPETADOR. ACTUAR não é ATUAR.

AFECTO, cicia ternura, diz por si a emoção que tem, basta soletrar, basta olhar, diferente será AFETO, uma palavra destituída desse encanto doce. TACTEAR, tem uma textura própria, sente-se, é palpável, diferente de TATEAR, uma palavra artificial,sem aquele sabor, aquele sentido, que a consoante lhe dá.

E tudo no essencial para eliminar as ditas "consoantes mudas". Mudas? não existem consoantes mudas, todas gritam, todas falam, se elas lá estavam na palavra, deveriam ser pronunciadas, em nome do bom português oral. Assim faz-se do erro a norma. As consoantes ditas "mudas" se pronunciadas, como teriam de sê-lo, acentuam a palavra, dão-lhe o gosto, a cor, a tonalidade,o vibrato,o sal, a ressonância própria, para acentuar o sentido e o étimo. TACTO não é TATO. RECEPTAR não é RECETAR. DILECTO não é DILETO. A consoante junto a consoante, acentua a pronúncia, exponencia o que se diz, reforça a sonoridade da palavra, acrescenta-lhe ritmo, vivacidade, é a oralidade do idioma português na sua expressão máxima e pura.

Podem mudar as palavras, podem transformar o seu grafismo, podem modificar a sua estrutura formal, podem decretar modos, podem retirar consoantes, podem fazer acordos, podem equivaler expressões, podem determinar tudo e mais que queiram, mas não alterarão sentidos,vivências, as evidências que advêm de íntimas e profundas significâncias que cada palavra possui, com a plenitude de todas as suas vogais e consoantes. Podem alterar, mas não se modifica assim, dos modos próprios de dizer e de sentir que cada palavra tem em nós, dos que vêm e sentem nas palavras o que verdadeiramente expressam, o que sempre, desde as primeiras falas, das primeiras leituras, elas significam e dizem.

* Rui Gonçalves da Silva/Madeira