Dr. Luís da Câmara Pestana, bacteriologista: vida breve, obra eterna (1863-1899) - Um sábio, médico,investigador e cientista, ao serviço da Ciência, no combate às epidemias
Introdução
Nesta série de apontamentos, que aqui vamos registando, sobre personalidades oriundas da Madeira, que nas várias áreas de intervenção, se distinguiram (sociais, políticas, culturais e económicas), no País e na região, marcando o seu tempo, pela vida e obra, pelo valor e mérito, destaco desta feita, o ilustre jovem médico – Dr. Luís da Câmara Pestana - que apesar de ter tido uma vida curta (faleceu aos 36 anos), deixou um lastro de saber e de inovação, num domínio complexo como a saúde pública, na investigação, estudo e pesquisa de terapêuticas inovadoras (vacinação) para doenças e calamidades (p.e. a febre tifóide, a peste bubónica, a raiva, difteria, tétano, tuberculose) males que persistiam, ceifando muitas vidas, numa época de enormes carências e problemas sanitários, face à imensa pobreza e condições de vida precárias, do País de então.
Este médico, homem da ciência, bacteriologista, foi pioneiro na sua especialidade, com reconhecimento nacional e internacional, marcou a sua geração, como médico, investigador e professor, deixou as bases para a consagração no sistema de saúde, de práticas de estudo e investigação, particularmente das doenças da área de saúde pública, além da criação do Instituto Bacteriológico e laboratórios de pesquisa e análise e instituição da prática generalizada da vacinação, contra as epidemias existentes.
Genealogia familiar
Nasceu nasceu na freguesia da Sé, no Funchal, Madeira, a 28 de Outubro de 1863, no nº 42 da atual Rua das Pretas, filho de Jacinto Augusto Pestana Júnior, funcionário da secretaria do Governo Civil do Distrito do Funchal, e de Helena Ana da Câmara Pestana, descendente de uma antiga família madeirense.
Do lado paterno, os seus avós foram: Jacinto Augusto Pestana Júnior e Vicência Olímpia Pestana e da parte te materna os seus avós foram: Tristão Joaquim Bettencourt da Câmara (morgado) e Helena Augusta Perestrelo.
Teve dois irmãos: Tristão da Câmara Pestana(1861/1942) - Coronel do exército que comandou o Corpo de Artilharia Pesada Independente, em França na 1ª guerra mundial e João da Câmara Pestana, engenheiro agrónomo que foi Director geral da agricultura e deputado pela Madeira em 1913.
Viveu com Getúlia Maria Rosa, não casado, e desta união nasceu a filha Luísa Câmara Pestana (1889/1929) que estudou em Bruxelas (Belas artes) e casou em 1914 com Albert François Leon Jourdain (pintor de arte moderna, com obras no Museu de arte moderna da Fundação Calouste Gulbenkian) e deste casamento nasceram: Teresa Câmara Pestana Jourdain e Jean-Jacques da Câmara Pestana Jourdain.
Vida académica e profissional
Consta nos seus registos, quanto ao seu percurso académico e profissional:
Fez a sua formação escolar no Funchal, tendo estudado no Liceu do Funchal (1876/1882) e posteriormente na Escola Politécnica de Lisboa (1883).
Em 1884, matriculou-se na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, onde foi um aluno distinto.
Concluiu a licenciatura em Medicina em 24 de julho de 1889, com a dissertação intitulada “O Micróbio do Carcinoma”, um dos primeiros trabalhos de oncologia experimental realizados em Portugal, influenciado pelos trabalhos do médico brasileiro Domingos Freire e do alemão Scheurlen.
Recuperando as principais teorias médicas de oitocentos, foi possível detectar no trabalho pioneiro de Câmara Pestana o reflexo da forte influência das teorias parasitárias da doença oncológica, no seio de um processo pleno de controvérsia e debate científico na altura.O então jovem médico português testou e colocou à prova os resultados obtidos por outros investigadores, num acto aparentemente inédito num laboratório nacional, naquele que é um dos primeiros trabalhos de oncologia experimental realizados em Portugal
A 17 de dezembro do mesmo ano, iniciou a sua carreira clínica nos hospitais civis de Lisboa, sendo nomeado cirurgião do Hospital de São José, lugar ao qual passou a efetivo após concurso, a 4 de dezembro de 1890.
Em maio de 1895, transitou para o quadro dos cirurgiões extraordinários do mesmo estabelecimento. Ainda em 1890, começou a dar aulas na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, sendo nomeado em 1898, por concurso público, lente substituto da mesma Escola, assumindo a regência das cadeiras de Anatomia Patológica e Medicina Legal, lugar que vagara com a morte do professor Sousa Martins.
Como médico e investigador do Hospital de São José viria a desenvolver um trabalho notável, desenvolvendo a grande paixão da sua vida: a bacteriologia, nessa altura ainda uma ciência embrionária, cujos inícios se deviam às pesquisas de Louis Pasteur, em França. Para Câmara Pestana foi criado um modesto laboratório bacteriológico, aproveitando uma dependência da rouparia do Hospital e nestas instalações precárias, inicia uma obra de pesquisa que viria a ser continuada por sucessivas gerações de investigadores.
Câmara Pestana começa por se dedicar ao estudo de uma das mais assustadoras doenças do seu tempo: o tétano. Através de cobaias, chega à descoberta da imunização activa, ou soroterapia, mediante um soro anti-toxina. Por essa altura, na Alemanha, Emile Behring alcança os mesmos resultados com outro método: a quimioterapia, através do tricloreto de iodo.
Em 1901, Behring receberia o Prémio Nobel pela sua descoberta, e segundo alguns, caso houvesse justiça, Câmara Pestana tê-lo-ia recebido ex-aequo.
Emil Adolf von Behring foi um microbiologista alemão, nascido na Prússia.Considerado um dos precursores da imunologia, foi o primeiro a ser agraciado com o Nobel de Fisiologia ou Medicina, em 1901, pelo seu trabalho no desenvolvimento da terapia de soro contra a difteria. Foi o autor de descobertas como o soro antidiftérico que levaram os novos tratamentos de muitas doenças da infância e desenvolveu um tipo de vacina contra a tuberculose bovina.
(O tétano é causado por toxinas eliminadas pela bactéria Clostridium tetani. A transmissão do tétano se dá como consequência de um corte, queimadura, tecidos necrosados ou ferimento na pele, desde que ele esteja sujo por poeira, terra, esterco e fezes humanas de animais que contenham esporos da bactéria.
O Tétano acidental é uma doença grave, não contagiosa, causada por uma bactéria (clostridium tetani) que é encontrada na natureza. A bactéria causadora do tétano acidental pode estar presente na pele, fezes, terra, galhos, plantas baixas, água suja .)
Em 1891, foi enviado pelo Ministério do Reino a Paris, por proposta dos professores Sousa Martins e Ferraz de Macedo, para aprofundar os estudos de bacteriologia e tomar conhecimento dos mais recentes trabalhos de Koch na prevenção e tratamento da tuberculose.
Em Paris, Câmara Pestana frequentou cursos e assistiu à investigação de bacteriologistas de renome como André Chantemesse (1851–1919), Pierre Charles Édouard Potain (1825–1901), André-Victor Cornil (1837–1908) e Isidore Straus (1845–1896). Estagiou no Instituto Pasteur, onde aprendeu o processo da vacina antirrábica.
Apresentou uma comunicação à Sociedade de Biologia de Paris, a 27 de junho de 1891, com o título “De la diffusion du poison du tétanos dans l’organisme”.
De regresso a Lisboa, foi nomeado preparador de bacteriologia da Escola Médico-Cirúrgica. Numa conferência na Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa (da qual era membro desde 1889), no dia 4 de junho de 1892, apresentou os resultados da sua viagem de estudo, particularmente no que se refere ao tétano.
Em 1892, perante um surto de febre tifoide em Lisboa e arredores, Câmara Pestana foi encarregado da análise das águas de Lisboa, tendo convidado para seu assistente Aníbal Bettencourt. Para este trabalho, foram encomendados os mais recentes instrumentos e meios, que foram instalados numa enfermaria do Hospital de São José. Este laboratório improvisado acabou por dar origem ao Instituto Bacteriológico de Lisboa, fundado por decreto de 29 de dezembro de 1892 e dirigido por Câmara Pestana.
O Instituto veio a ter o nome do seu fundador em 1899, após a sua morte, por proposta dos estudantes da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e no mesmo ano em que mudou para instalações próprias. O Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana foi incorporado na Universidade de Lisboa em 1911, anexo à Faculdade de Medicina de Lisboa até à publicação dos Estatutos da Universidade de Lisboa, em 1989. Atualmente o Instituto desenvolve ações no campo da Saúde Pública, particularmente nos domínios da difteria, estreptococias, microbiologia clínica e verificação de produtos biológicos. Este laboratório produz a vacina anti-tuberculose e é responsável pela vertente humana da luta antirrábica em Portugal.
Em 27 de junho de 1893, Câmara Pestana apresentou um programa de inquérito à patologia portuguesa, com aplicação à exploração científica dos Açores, na Secção de Geografia Médica da Sociedade de Geografia de Lisboa.
Em 1894, ocorreu em Lisboa, um surto que foi designado como epidemia da Cólera , que era atribuída à má qualidade das águas. Câmara Pestana, foi encarregado, por ofício do Ministério do Reino de 30 de abril, de realizar a investigação bacteriológica a essa epidemia, tendo demonstrado, apesar de entendimentos contrários de alguns dos seus pares, que a mesma não era cólera, mas derivada do Vibrião das águas (Vibrião, ou vibrio é um tipo de bactéria dotada de mobilidade, em forma de bastonetes curvos, como uma vírgula. As células podem se ligar uma à outra, formando a letra "S" ).
Teve também um papel importante, em 1895, no combate à difteria (A difteria, é uma infecção respiratória altamente contagiosa, que pode afetar várias partes do corpo, incluindo as amígdalas, a laringe, o nariz, e até mesmo a pele e as mucosas.), através da aplicação de soro anti-diftérico obtido em animais por inoculação da toxina diftérica atenuada.
Em colaboração com Aníbal Bettencourt, elaborou nesse ano três artigos científicos sobre esta epidemia, além de um outro sobre “O tratamento da raiva em Portugal pelo método Pasteur”, que foram publicados em revistas médicas. Estes seus artigos foram também publicados em alemão em revistas internacionais, assim como outros sobre variadas especialidades da bacteriologia. Parte dos seus estudos incidiu sobre a difteria e o respetivo tratamento com o soro antidiftérico, tema sobre o qual também publicou importantes artigos científicos.
O seu colaborador Aníbal de Bettencourt nasceu em Angra do Heroísmo a 21 de Junho de 1868 ( faleceu a 9 de Janeiro de 1930 em Lisboa) foi um médico que se notabilizou como bacteriologista, tendo colaborado e continuado o trabalho de Luís da Câmara Pestana, após a sua morte. Foi um dos pioneiros em Portugal do estudo das doenças infecciosas e dos seus vectores e um dos mais reputados higienistas do seu tempo. Foi subdirector e director do Real Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana, em Lisboa.
Da colaboração entre Bettencourt e Câmara Pestana, resultaram os trabalhos sobre a bacteriologia das águas de Lisboa e sobre a epidemia de Lisboa de 1894 e publicado em 1898, um estudo sobre a hemoglubinúria dos bovídeos.
Antes de falecer, Câmara Pestana recomendou à Rainha Dª. Amélia o seu colaborador Aníbal de Bettencourt, como personalidade a nomear para o cargo de director e a 30 de Novembro de 1899, quinze dias após a morte de Câmara Pestana, aquele foi nomeado Director do Real Instituto Bacteriológico de Lisboa.
O Instituto Bacteriológico de Lisboa, surge como instituição dedicada à microbiologia médica, criado em Lisboa a 29 de Dezembro de 1892, como serviço especializado do Hospital de São José, tendo como finalidade principal a efectivação de análises bacteriológicas e o tratamento preventivo da raiva humana, utilizando o método de Pasteur. O Instituto Bacteriológico resultou assim, da iniciativa de Luís da Câmara Pestana, que foi o seu primeiro director, tendo como médico auxiliar Aníbal de Bettencourt.
Instalado numa dependência do Hospital de São José, em 9 Março de 1895 foi autonomizado, tomando a designação de Real Instituto Bacteriológico de Lisboa. Foram então definidas como principais objectivos a vacinação anti-rábica, a preparação de soros antitóxicos para o tratamento da difteria, do tétano e outras doenças infecciosas, acompanhamento dos progressos da ciência microbiológica, com a preparação de vacinas, reduzindo os encargos económicos com a importação de vacina e soros.
A partir de Fevereiro de 1897 o Real Instituto Bacteriológico publicou um periódico médico intitulado ”Archivos de Medicina”, inicialmente dirigido por Luís da Câmara Pestana e secretariado por Aníbal Bettencourt, tendo como colaboradores, entre outros, os bacteriologistas Francisco Stromp e Francisco Xavier da Silva Teles.
Em 1899 o Real Instituto Bacteriológico de Lisboa foi transferido para um edifício próprio, o edifício que actualmente ocupa, tomando o nome de Real Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana, em homenagem ao seu fundador, falecido nesse mesmo ano.
Com a implantação da República Portuguesa e a criação da Universidade de Lisboa, em 1911 o Instituto Bacteriológico de Câmara Pestana foi anexo à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, situação que manteve até 1989, quando a publicação dos Estatutos da Universidade de Lisboa o fez transitar para a dependência directa da reitoria daquela instituição.
Durante muitas décadas, o IBCP foi o laboratório produtor da vacina antituberculose (BCG) e entidade coordenadora da vertente humana da luta anti-rábica em Portugal, desenvolvendo acções no campo da saúde pública, particularmente nos domínios da difteria, estreptococias, microbiologia clínica e verificação de produtos biológicos.
Entre 1892 e 1893, Câmara Pestana associa o ensino à investigação passando a leccionar noções práticas de Microbiologia, na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, regida pelo professor José Thomaz de Sousa Martins. Ao mesmo tempo que exercia a sua função de docente, continuava a dedicar-se, juntamente com os seus colaboradores, ao tratamento preventivo da raiva humana, utilizando o método pasteuriano e seguindo as orientações do Instituto Pasteur. Prosseguindo com a divulgação da actividade do recém-criado Instituto Bacteriológico, Câmara Pestana, em colaboração com Aníbal Battencourt, reúne numa publicação interpretativa, no ano de 1894, as estatísticas do tratamento preventivo da raiva pelo método de Pasteur, publicadas mensalmente em 1893. O balanço desse primeiro ano de utilização da vacina preparada no Instituto pelo Câmara Pestana foi muito positivo quanto à qualidade da vacina,
(José Tomás de Sousa Martins (1843/1897) foi um médico e professor catedrático da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, antecessora das Faculdades de Medicina de Lisboa, a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e a Faculdade de Ciências Médicas da UNL - Universidade Nova de Lisboa. Formado em Farmácia e Medicina, trabalhou intensa e, na maioria dos casos, gratuitamente, sobretudo no combate à tuberculose. Orador brilhante, dotado de humor e inteligência, homem de actividade inesgotável e praticante incansável da caridade junto aos mais desfavorecidos, exerceu uma forte influência sobre os colegas de profissão, os alunos e os pacientes que tratou. )
Combate à Tuberculose : Câmara Pestana distinguiu-se também no combate à tuberculose (1889), defendo que esta era uma doença evitável, com medidas preventivas, com cuidados próprios. Defendeu a criação de sanatórios e a criação da Assistência aos tuberculosos, tendo tido sempre o apoio da rainha Dª Amélia (foi uma princesa francesa, esposa do rei Carlos I de Portugal e a última Rainha Consorte de Portugal e Algarves de 1889 até ao assassinato do marido em 1908. Era a filha mais velha do príncipe Luís Filipe, Conde de Paris, pretendente ao trono francês, e de sua esposa, a princesa Maria Isabel de Orleães, Infanta da Espanha.Como rainha, porém, Amélia desempenhou um papel muito importante. Com sua elegância e caráter culto, influenciou a corte portuguesa. Interessada pela erradicação dos males da época, como a pobreza e a tuberculose, fundou dispensários, sanatórios, lactários populares, cozinhas económicas e creches, demonstrando assim o seu interesse pelo bem-estar da população portuguesa. Todavia, suas obras mais conhecidas são as fundações do Instituto de Socorros a Náufragos (em 1892); do Museu dos Coches Reais (1905); do Instituto Pasteur em Portugal (Instituto Câmara Pestana); e da Assistência Nacional aos Tuberculosos.
Ao longo da sua carreira, Câmara Pestana manteve contactos com os principais vultos e escolas médicas da época e constituiu um grupo de colaboradores, que garantiu a continuidade da sua investigação: Aníbal Bettencourt, que o sucedeu na direção do Instituto Bacteriológico, Morais Sarmento, Gomes de Resende e Carlos França.Como especialista reconhecido, integrou várias comissões científicas nacionais e estrangeiras.
Foi nomeado membro de importantes sociedades científicas, mantendo correspondência com vários cientistas estrangeiros, que em vários escritos, lhe fizeram as mais elogiosas referências.
Publicou artigos e memórias grande valor científico, na revista ”Medicina Contemporânea” (1882-1974) e na ”Revista de Medicina e Cirurgia”, que fundara, em colaboração com outros médicos de renome, como Alfredo da Costa, Mello Viana, Avelino Monteiro e Augusto Vasconcellos, cujo primeiro número saiu em janeiro de 1894 e que foi publicada até julho de 1895. Foi ainda diretor da revista mensal ”Archivos de Medicina” publicada entre 25 de fevereiro de 1897 e 1898 pelo Real Instituto Bacteriológico de Lisboa.
A peste bubónica: a ultima batalha
A terceira pandemia de peste (1855) foi uma grande pandemia de peste bubônica que começou em Iunã, China, durante o quinto ano do imperador Xianfeng da dinastia Qing. Espalhou-se por todos os continentes habitados e vitimou 10–12 milhões de pessoas somente na Índia e China, tornando uma das pandemias mais mortais da história — estima-se que mais de 15 milhões de pessoas mundialmente.
A Peste Grande foi o nome como que ficou conhecida uma epidemia de peste bubónica que ocorreu em Lisboa entre Abril de 1569 e Julho de 1570. A Peste Grande foi a maior epidemia de peste das três que assolaram Portugal na segunda metade do século XVI, desconhecendo-se ao certo o número exacto de óbitos por ser tão elevado, que os párocos das diferentes freguesias terem deixado de os conseguir registar: com base em registos contemporâneos e investigações posteriores, atribuem-se-lhe entre 40 a 50 mil mortes.
Foi há 120 anos, precisamente no Verão de 1899, que deflagrou um surto de peste bubónica no Porto, que causou várias mortes e obrigou as autoridades a declarar um cordão sanitário em volta da cidade (cerco) para impedir a propagação da síndrome pestífera, identificada como o bacilo de Yersin, que foi localizado em alguns das pessoas mortas e em ratos e gatos putrefactos na zona da Ribeira, mas que ficou, graças às fortes medidas sanitárias empreendidas, circunscrita à cidade do Porto.
O surto de peste bubónica na cidade do Porto, registou 320 infetados e provocou 132 mortes. Números baixos, quando comparados com os surtos de peste registados na Idade Média - muito devido à intervenção rápida de Ricardo Jorge e à evolução das condições de higiene.
O acontecimento determinante da vida e da morte de Câmara Pestana, ocorreu em junho de 1899, quando surgiram vários casos de peste bubónica no Porto, diagnosticada pelo médico municipal e diretor do posto de desinfeção pública do Porto, Ricardo Jorge. Foram imediatamente postas em práticas medidas sanitárias para o combate aos agentes transmissores da doença, que já eram conhecidos - os ratos e as pulgas - e encomendado ao Instituto Pasteur de Paris, tubos do soro Yersin, que tinha sido desenvolvido por Alexandre Emile Jean Yersin, um médico suiço responsável pelo isolamento do bacilo da peste bubónica em 1894, em conjunto com Kitasato Shibasaburō, após investigação sobre esta doença na China.
Durante a epidemia de peste em Macau, em 1898, o soro já fora testado, sendo que a sua eficácia dependia da rapidez da aplicação, logo nos primeiros dias da doença, e funcionava melhor ainda como preventivo, como foi usado pelos médicos franceses, que se deslocaram ao Porto para estudar a evolução da epidemia: Calmette, delegado do Instituto Pasteur de Paris, e Salemberie, preparador ajudante de Roux, também do Instituto Pasteur.
Apesar da confiança neste soro, Ricardo Jorge tinha dúvidas, que se confirmaram, tendo Câmara Pestana sido nomeado em comissão de serviço público para estudar a eficácia do soro contra a peste no Porto.
(Ricardo de Almeida Jorge (1858/1939), foi médico, investigador, higienista, professor de Medicina, escritor e introdutor em Portugal das modernas técnicas e conceitos de saúde pública, exercendo diversos cargos na administração da saúde e conseguindo uma importante influência política.Distinto médico, epidemiologista, investigador, higienista e humanista, que divulgou nos finais do século XIX e princípios do século XX, as mais recentes técnicas daquela época e as primeiras noções de Saúde Pública em Portugal.
Entre 1891 e 1899 foi médico municipal do Porto e responsável pelo Laboratório Municipal de Bacteriologia, tornando-se, em 1895, professor titular da cadeira de Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Em Junho de 1899 deu-se a sua consagração definitiva a nível nacional e alcançou projecção internacional quando, sem hesitações, chegou à prova clínica e epidemiológica da peste bubónica que nesse ano assolou a cidade do Porto, tendo esta sido depois confirmada bacteriologicamente por ele próprio e Câmara Pestana. No entanto, as operações profiláticas que orientou no sentido de eliminar a peste, como a evacuação de casas e o isolamento e desinfecção de domicílios, entre outras, desencadearam a fúria popular que, incentivada por grupos políticos, obrigaram Ricardo Jorge a abandonar a cidade.
Terá sido Ricardo Jorge, o responsável nos anos 20, pela proibição da Coca-Cola em Portugal (só 50 anos depois levantada), tendo alegadamente ordenado a sua apreensão e destruição, depois de tomar conhecimento do slogan publicitário da bebida, criado por Fernando Pessoa: "Primeiro estranha-se, depois entranha-se".)
Câmara Pestana, acompanhou no Porto a epidemia da peste bubónica e quando autopsiava um pestífero, cortou-se com um bisturi e é desse modo contagiado, não obstante dois meses antes, ter sido vacinado com o soro Yersin, contudo tal não o impediu de contrair a doença.
A peste, conhecida como peste negra ou peste bubónica, é uma doença grave causada pela bactéria Yersinia pestis, normalmente encontrada nas pulgas que os ratos carregam em seu corpo.
A doença ficou popularmente conhecida como “peste negra” por conta do escurecimento das extremidades do corpo causado pela gangrena. Estima-se que ela tenha sido responsável pela morte de cerca de um terço da população europeia entre 1347 e 1353.
Esta bactéria transmite-se de roedor para roedor e destes passa para os seres humanos através das picadas das pulgas infetadas. A infeção pode também resultar da exposição aos fluidos corporais de um animal infetado com a peste.
No dia 10 de novembro de 1899, Câmara Pestana regressou a Lisboa para participar no Conselho Superior de Saúde e Higiene Pública, que se reuniu sob a presidência do Conselheiro Ferraz de Macedo e sem se aperceber da sua situação de contaminado, violou sem se aperceber, os preceitos rigorosos do cordão sanitário, que implicavam quarentena e inspeções médicas a todos os passageiros que chegavam a Lisboa, pelo que terá sido Câmara Pestana, um dos doentes de peste, a disseminar a epidemia, para fora do Porto.
Segundo os relatos de então “Quando chegou a Lisboa, assistiu à reunião do Conselho e à noite já revelava sintomas da peste bubónica. O primeiro médico que o examinou foi Silva Carvalho, subdelegado de saúde, tomou logo todas as providências que o caso requeria, dando de imediato conhecimento ao Governador Civil, que mandou remover o doente e sua família para o Hospital de Arroios e ordenando o completo isolamento do prédio onde habitavam. Todas as famílias que ali moravam foram levadas para o Lazareto, onde cumpriram a respetiva quarentena.”.
A gravidade do seu estado provocou consternação na sociedade, incluindo o rei D. Carlos, que foi ao hospital de Arroios visitá-lo, como o Cardeal Patriarca, e alunos do curso de Medicina Veterinária do Instituto de Agronomia e Veterinária, que dirigiram uma mensagem a Câmara Pestana com mais de 30 assinaturas. No entanto, apesar da situação terminal em que se encontrava, Câmara Pestana, conforme consta, não perdeu o seu sentido de humor, declarando aos colegas que o visitaram: “Há casos, meus caros amigos, nos quais os meios empregados pelos padres, hindus ou árabes, ou os métodos da ciência moderna, dão o mesmo resultado. É o meu caso, como podem ver”.
Como consequência do contágio que o afetou,, acabou por falecer cinco dias depois da doença se manifestar, apenas com 36 anos e no auge de uma carreira distinta, sendo alvo das maiores homenagens por parte da sociedade, incluindo os eus pares e a população em geral. Em vários elogios fúnebres foi descrito como um “mártir da ciência”.
(como p.e. outros casos: Sousa Martins, infectado pela tuberculose pulmonar, que sempre combateu; Miguel Bombarda, assassinado a tiro por um dos loucos que tratava)
Foi sepultado no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.
As circunstâncias trágicas que determinaram a sua prematura morte, que sensibilizou todo o país, causaram emoção pública, sendo objecto de grande cobertura pela imprensa e deram origem a múltiplas homenagens.
O rei D. Carlos I associou-se à homenagem, solicitando do Governo uma pensão para a viúva e filha. Na edição de 16 de novembro de 1899 do Diário Illustrado, pode ler-se a carta enviada pelo rei a José Luciano de Castro: “15-XI-1899. Meu caro José Luciano; Acabo de saber n’este momento a tristíssima notícia da morte do Pestana. É meu desejo que tão depressa as Câmaras reunam, o meu governo apresente às Côrtes um projecto de lei concedendo uma pensão à mãe e à filha do sábio professor Pestana, victima gloriosa do seu árduo dever. E quero que assim seja porque é à Nação a quem cumpre prestar homenagem à memória de quem, em vida, tanto a honrou. Teu amigo verdadeiro, El-Rei”.
Na casa em que nasceu no Funchal, foi colocada, a 15 de novembro de 1913, uma lápide de mármore, que contém, alusiva ao facto, a seguinte inscrição: "Casa onde nasceu em XXVIII de Outubro de MDCCCLXIII o insigne bacteriologista português, Dr. Luiz da Câmara Pestana, falecido em Lisboa aos XV dias de Novembro de MDCCCXCIX, vítima da peste bubónica que infestou a cidade do Porto, e a cujos estudos se dedicou com a maior abnegação e altruísmo humanitário. Homenagem da classe medica da Madeira. 1913."
Um dos mais prestigiosos prémios investigação científica existentes em Portugal tem o nome de Prémio Câmara Pestana, galardoando o trabalho científico sobre microbiologia realizado por pessoas, equipas de trabalho ou instituições portuguesas que se destaque no contexto nacional e internacional.
Principais publicações de Câmara Pestana
Ao longo da sua carreira, como especialista, nas questões das doenças contagiosas, elaborou vários estudos, de que se destacam:
- Luís da Câmara “O micróbio do carcinoma.” Dissertação inaugural. Lisboa: Escola Médico-Cirurgica de Lisboa, 1889.
- Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “Contribuição para o estudo bacteriológico da epidemia de Lisboa.” Revista de medicina e cirurgia (1894).
- Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “O tratamento da raiva em Portugal pelo methodo Pasteur: 1893.” Revista de medicina e cirurgia (1894).
- Pestana, Luís da Câmara e Aníbal Bettencourt. “Primeiro relatório apresentado ao Exmº Ministro do Reino sobre a analyse bacteriológica das águas potáveis de Lisboa.” Jornal da Sociedade das Sciencias Médicas de Lisboa.
- Pestana, Luís da Câmara. “A peste bubónica.” Arquivos de medicina (1897)
Pestana, Luís da Câmara. “Considerações sobre o diagnóstico da difteria.” Arquivos de medicina .
- Pestana, Luís da Câmara. “A sôrotherapia na diphteria.” Arquivos de medicina 1 (1897).
- Pestana, Luís da Câmara e Belo de Moraes. “Sarcoma da base do craneo.” Arquivos de medicina .
- Pestana, Luís da Câmara. “Contribuição para o estudo do mecanismo da imunidade passiva.” Arquivos de medicina (1898).
- Pestana, Luís da Câmara. “Os progressos da medicina em 1898 na Bacteriologia.” A Medicina Contemporânea Janeiro (1899).
- A Raiva em Portugal (1896, em colaboração com Miguel Bombarda e Bakteriologische Untersuchungen über die Lissaboner Epidemie von 1894 (1898).
Conclusão
Neste simples apontamento, resumimos o essencial da vida e obra deste ilustre médico, que dedicou a sua carreira profissional, como médico, professor e investigador, particularmente na área da Saúde pública e nas doenças contagiosas, tão comuns na sua época, num País pobre, com altos níveis de miséria e de falta de salubridade, com forte influência das crenças e da religião, de fortes opositores ao combate às epidemias, aos cercos sanitários, às vacinas, à profilaxia, sobretudo quando isso implicava novos métodos e procedimentos. Contudo, Câmara Pestana, com o seu empenho, estudo e determinação, venceu essas barreiras e constrangimentos e demonstrou a razão científica das suas ideias, deixando uma obra de valor e mérito, como bacteriologista de excelência, um cientista visionário, combativo e competente.
Pena é a sua morte ter ocorrido muito precoce, com apenas 36 anos, vítima de um vírus que combatia, assumindo esse risco, nesse modo de ser, de estar na linha da frente dessa luta, em prol dos outros.
É de supor, sem exagero, que caso a sua vida tivesse sido mais prolongada, se tivesse a oportunidade de mais anos de trabalho , de estudo e de investigação, teria engrandecido o saber e a ciência médica a níveis superlativos, que o fariam uma referência ímpar, ainda maior, no universo das sumidades da ciência nacional e internacional, fruto desse pacato jovem médico, vindo de uma pequena região insular (Madeira) que de forma tão nobre soube prestigiar e constituindo um exemplo do querer, da vontade, do empenho e da competência, merecedor do reconhecimento de todos nós.
Bibliografia:
-Elucidário Madeirense - Padre Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes
- Luis da Câmara Pestana “Uma vida curta, uma obra enorme” - Juvenália Borges, Margarida Cunha,Maria das Dores Prazeres, Rui Oliveira - Funchal 500 anos
- Câmara Pestana – o Pasteur português - Adérito Tavares
* Rui Gonçalves da Silva/jurista/Madeira/2025