• * LOURDES DE CASTRO: a luz na Sombra


Lourdes de Castro : Uma Vida serena, de luz, cor e sombras

Este é um simples e breve apontamento, um mero registo de circunstância, sobre a obra e vida artística desta artista, que sendo natural desta pequena terra insular - A Madeira - projetou-se no País e no Mundo, pela sua singularidade e pela marca de criatividade e inovação que a distinguiu.

Não é fácil apreender e retratar a imensidão, singeleza e complexidade da sua obra, que seguiu itinerários de busca, de procura, de conhecimento e sobretudo de afirmação, num registo muito próprio e pessoal, na sua visão do mundo e da arte, expresso em formas inovadoras de representação, onde a sombra, como lado oculto e enigmático das formas e contornos, constituíu o seu modo de olhar, de sentir e de viver.

Nota-se em todos os modos de expressão da sua arte, uma aparente simplicidade, que insta a olhares mais profundos e complexos, na aparente singeleza do que o mundo nos faculta, para além do óbvio e do evidente.

Quando recentemente visitei - uma visita absurdamente adiada - a casa e o espaço em que viveu, no Caniço, Lurdes de Castro, um local onde a natureza existe, de forma exuberante, na sua harmonia pura, entendi, um pouco, da dimensão e da mensagem da sua obra e da sua vida, feita de silêncios e de sombras, no essencial, o outro lado das coisas e das pessoas, o respirar da terra, a energia da pedra bruta e o sussuro de uma simples flor campestre. O lado sereno da vida, afinal.

Vi o banco de pedra, rude e tosco, onde se sentava, à sombra de árvore imponente, para contemplar o seu prado de flores silvestres,alecrim e trevos, azedas selvagens plenas de flor amarela, numa apoteose da natureza tal qual, como ela queria, na sintonia perfeita do que era, simples, verdadeira e autêntica.

Dizia, Lurdes de Castro:

“Eu faço objectos /Eu faço esculturas /Eu faço relevos /Eu colo coisas /Eu colo tudo o que é para deitar fora, /todas as tralhas que já não servem para nada, /velhas coisas usadas, novas, muito novas, /sem graça; /coloco-as umas ao lado das outras, /empilhadas ou seguindo linhas, não sei /quais; espaços em volta ou espaços nenhuns, /cheios. /Pinto tudo a alumínio. /É isto”, Lourdes Castro,1961.

«A sombra é o mínimo que se pode dizer de qualquer coisa.»

A sombra é isso: ”Tem tudo o que tem o objecto mas o mínimo possível para ser reconhecido”

Para Lourdes Castro a sombra é sinal, vestígio, presença de uma ausência que não se quer, ou não se pode, esquecer , na sua obra a morte não tem a última palavra, e a cor, a fluorescência, a transparência transmitem-nos alegria e bem estar.

Maria de Lourdes Bettencourt de Castro (nasceu no Funchal, 9 de dezembro de 1930 – e faleceu nesta cidade a 8 de janeiro de 2022) foi uma artista plástica portuguesa, de nível internacional, singular e inovadora, que marcou, a seu modo e estilo, o seu tempo e a história da arte, sobretudo pela constante procura de formas inovadoras de expressão da sua arte e da sua visão do mundo, das pessoas e da vida, particularmente na sua perspectiva de olhar o mundo, as pessoas e os objetos, pela sua Sombra.

Da ilha, sua terra mãe, fez-se ao mundo, na procura de novos conhecimentos, aprendizagens e desafios, partindo em 1950 para Lisboa, Paris, Munique onde fez um percurso de estudo e inovação em vários domínios da arte (pintura, serigrafia, tapeçaria, azulejos) e retoma à sua terra natal 1983, onde faleceu, em 2022.

A sua avó, Laura Estela Magna, foi a sua orientadora e incutiu-lhe o gosto pela aprendizagem e criatividade, ela que fora a primeira aluna do Liceu do Funchal.

Lourdes estudou na Escola Alemã do Funchal até esta ter encerrado devido à II Guerra Mundial. Após o liceu ficou na Madeira três anos a trabalhar num jardim de infância.

Frequenta o curso de Pintura (Curso Superior de Belas Artes) da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, curso que não viria a terminar por via da sua "expulsão" em 1956, "pela não conformidade com o cânone académico que dominava o sistema de ensino de então", por já nessa altura revelar o seu espirito criativo, a sua visão da arte , do mundo, que não se enquadrava nos limites e condicionantes da escola clássica e dos saberes padronizados. ( no exame pintara corpos/nús a verde e azul).

Expõe individualmente pela primeira vez em 1955, no Clube Funchalense, Funchal, participando também em algumas exposições coletivas em Lisboa.

Parte para Munique em 1957 e depois, instala-se em Paris com o marido, René Bertholo, com o qual funda, no ano seguinte, juntamente com Costa Pinheiro, João Vieira, José Escada, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo, o grupo KWY, participando nas diversas iniciativas deste grupo.

Entre 1957 e em 1958, foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian – esta bolsa contribuiu para o desenvolvimento do projeto KWY, uma revista com 12 números, em torno da qual se formou um coletivo de artistas com o mesmo nome, que incluía Lourdes Castro, René Bertholo, Jan Voss, Christo Javacheff, Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, José Escada e João Vieira.

Na década de 1960, Lourdes Castro descobriu o seu tema de eleição, que acompanhou o seu percurso artístico – a sombra. Explorando diversas técnicas e experimentando com materiais pouco convencionais, como o plexiglas ou lençóis de linho, a artista desenvolveu várias obras em torno desta temática, muitas das quais fazem hoje parte da Coleção do CAM, na qual se encontra amplamente representada com 24 obras.

Nesse período produz, primeiro com Bertholo e depois com Manuel Zimbro, um Teatro de Sombras. A sua obra inicial é marcada pelo abandono dos suportes e disciplinas mais tradicionais e caracteriza-se pelas assemblages de referências neo-dadaístas, em que vários objectos do quotidiano são manipulados e imbuídos de novas significações formais. A busca pela compreensão da forma leva Lourdes Castro a desenvolver, a partir da década de 1960, uma intensa e prolongada pesquisa sobre perfis e sombras, enquanto elementos processuais da desmaterialização e redefinição do objecto.

Cria, com Bertholo, a revista KWY (1958-1963), edição de um grupo informal que reúne, para além dela e de Bertholo (que será mais tarde, um dos atores de figuração narrativa), o búlgaro Christo, o alemão Voss, e os portugueses António Costa Pinheiro, José Escada, João Vieira e Gonçalo Duarte. O grupo organiza exposições (em 1960, em Saarbrücken e em Lisboa; em 1961 em Paris; em 1962 em Bolonha), publica uma revista e edita obras, trabalhando essencialmente na arte da serigrafia.

Até 1960, Lourdes Castro, influenciada pelo amigo Arpad Szenes, usa uma técnica de pintura que se pode classificar como abstração lírica. Depois, em 1961, muda por completo, abandona a pintura e aproxima-se dos pintores que se agrupam sob a designação de Nouveaux Réalistes: realiza assemblages de objetos heteróclitos destinados ao esquecimento. São apresentados no interior de caixas e uniformizados por uma camada de tinta prateada. A artista brinca com acumulações de letras de imprensa ou cápsulas de garrafas.

Graças à experiência adquirida na realização de serigrafias para a revista KWY, faz impressões seguindo a mesma técnica e dispondo diretamente os objetos sobre seda pré-sensibilizada.

Em 1962, trabalha sobre sombras, projetando silhuetas sobre a tela e conservando apenas o contorno desenhado.

Em 1983, Lourdes Castro e Manuel Zimbro deixaram Paris e regressaram a Portugal, à Madeira. No dia 21 de Abril desse ano, instalam-se provisóriamente na Quinta do Monte, um palacete do início do século XIX, rodeado de um grande jardim – emprestado pela família Rocha Machado onde viveu e faleceu(1922) o imperador Carlos de Áustria, para aí residirem enquanto procuravam o espaço onde iriam construir a sua casa.

Elabora o Álbum da Quinta do Monte, nunca exposto, onde Lourdes Castro manifesta a prática de recolha recorrente em muitos dos seus livros de artistas – misturando a sua vida, durante a estadia naquela Quinta, com a dos anteriores habitantes, cruzando referências e colecionando indícios. Recolhe fotografias da casa, dos interiores, dos jardins, dos amigos que os visitam e da vida quotidiana do casal; guarda fotocópias de livros sobre a história da Quinta e das famílias que a habitaram; acumula recortes com notícias relacionadas com o exílio do Imperador austro-húngaro, Carlos de Áustria, e os relatos das conversas com os visitantes estrangeiros que iam visitar a última morada do Imperador.

No dia 23 de maio de 1988, Lourdes Castro e Manuel Zimbro mudaram-se para a casa que construíram no Caniço, num local campestre, um refúgio rústico, moldado à sua imagem - um espaço de natureza pura, quase selvagem, onde a natureza se revela na sua beleza simples e perfeita, em harmonia, e neste paraíso continuaram a sua história, a sua criação, até ao fim dos seus dias.

Companheiros de Vida e de criação

Na vida de Lourdes de Castro e da sua atividade artística e criativa, teve dois companheiros importantes com quem, partilhou o seu percurso ( René Bertholo ( de 1950 a 1972) e Manuel Zimbro ( de 1983 a 2003).

René Bértholo (nasceu em Alhandra, 1935,Vila Nova de Cacela, faleceu a 10 de Junho de 2005) foi um artista plástico português, autor de uma obra multifacetada centrada sobretudo na pintura e na escultura mas com incursões por outras áreas (como a música).

Frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio entre 1947 e 1951.

Depois de concluir os estudos liceais em 1951, integrou-se na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, onde esteve e até 1957.

Entre 1953 e 1955, foi um dos fundadores e directores da revista Ver, em conjunto com os seus colegas da escola. Começou a expor ainda como aluno da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, tendo em 1953 feito parte da VII Exposição Geral de Artes Plásticas, a convite de Júlio Pomar, e em 1954 entrou no I Salão de Arte Abstracta.

Em 1956 organizou um atelier por cima do Café Gelo, no Rossio, com José Escada, Gonçalo Duarte e João Rodrigues Vieira e fazia parte de um grupo informal que se reunia no café, onde convivia com vários artistas, como Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Herberto Hélder e Mário-Henrique Leiria.

Em outubro de 1956 casou com Lourdes Castro, e nesse ano viajou até Munique, na Alemanha, onde esteve cerca de um ano, tendo feito exposições com Lourdes Castro, Costa Pinheiro e Gonçalo Duarte Regressou a Portugal durante algum tempo, e depois fixou-se em Paris, no Inverno de 1958. Naquela cidade criou um dispositivo de serigrafia, que permite a edição da revista KWY, fundada por si e por Lourdes Castro, relacionada com o grupo do mesmo nome, formado pelo casal e pelos artistas Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte, José Escada, João Vieira, Jan Voss e Christo.

A partir de 1966, começou a construir vários objectos com movimento, chamados de modelos reduzidos. Fez parte de uma exposição no Museu de Arte Moderna de Paris, e foi responsável por uma grande pintura mural em Halles, a convite do Centro de Arte Contemporânea. Também fez várias esculturas para espaços urbanos, utilizando betão armado a cores e cerâmica. Entretanto separou-se de Lourdes de Castro.

Na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, que restaurou a democracia voltou a Portugal em 1981, tendo-se estabelecido na região do Algarve. Além de trabalhar em pintura, também criava objectos animados, destacando-se a sua máquina de música. Em 1983, criou uma obra de arte para o Hospital do Barreiro.

René Bertholo faleceu em 10 de Junho de 2005, vítima de doença prolongada

Manuel Zimbro

Manuel Zimbro, artista e divulgador do budismo zen, morreu no Funchal em 22 de Maio, vítima de cancro, nasceu em Lisboa em 1944, frequentou a Escola António Arroio e posteriormente instalou-se em Paris no final dos anos 60. Na década seguinte começou a colaborar nos espectáculos de teatro de sombras de Lourdes Castro, criando novos dispositivos de iluminação e assumindo a co-autoria das obras As Cinco Estações, 1976-80, e Linha de Horizonte, 1981-85. Tendo passado a partilhar a vida da artista, foi também autor de diversos textos publicados nos seus catálogos, nomeadamente quando da sua retrospectiva, na Gulbenkian (Além da Sombra, em 1992) e da recente exposição no Museu de Serralves (Sombras à Volta de um Centro, 2003).

Manuel Zimbro afirmava a prioridade da arte de viver e recusava a ideia de seguir uma carreira, tendo-se limitado a raras aparições públicas. Em 1994 expôs «Torrões de Terra», minuciosas micropaisagens pintadas a guache, na livraria Assírio & Alvim, e em 1997-98, na Galeria Porta 33 do Funchal e no mesmo local em Lisboa, apresentou «História Secreta da Aviação», desenhos e objectos escultóricos em madeira realizados a partir da observação de sementes. Os dois projectos foram editados em livro com textos da sua autoria.

Aplicou-se a investigar as “dimensões secretas da sombra”, onde se inscreve toda essa luta que há dentro da ausência, e que nos liga ao modo mais íntimo que temos de recriar o mundo, que é por meio da lembrança.

Interessava-se por assuntos espirituais, tornando-se praticante e divulgador do budismo zen.

A 22 de maio de 2003, Manuel Zimbro faleceu, vítima de doença prolongada, no Funchal, Madeira.

A Sombra: outra perspetiva de olhar o mundo e criar arte

No seu percurso criativo, feito de fases, de procura e evolução, de novos materiais e formas de expressão, a descoberta da perspetiva da sombra, como outro lado, outra forma de olhar as pessoas, os cenários, os objetos, no outro lado da luz, constitui decerto, a sua maior peculariedade e a marca da sua obra. E isso representa a constância da sua procura por uma outra forma de ver, de sentir e de se expressar plasticamente, no seu entendimento, de que a arte, estará, além do óbvio.

O conceito de sombra irá tornar-se central em praticamente toda a sua produção posterior; "sombras recortadas ou projetadas, teatros de sombras, sombras bordadas sobre lençóis fugazes, vários foram os modos e registos de que a artista se socorreu para relacionar essa perceção do imaterial com a necessária materialidade do espaço plástico".

Partindo de experiências ao nível da impressão serigráfica, começou a fixar silhuetas de amigos projetadas em tela. A partir de 1964 utiliza o plexiglas recortado, transparente ou colorido, em placas sobrepostas, de modo a dotar as sombras evocadas de sombras próprias, como acontece, por exemplo, em Sombra Projectada de René Bertholo, 1965.

Plexiglas: o novo material de trabalho

Embora o químico e inventor Otto Rohm tenha tido a ideia do plexiglas pela primeira vez em 1901, somente em 1933 a empresa Rohm & Haas o introduziu no mercado pela primeira vez com esse nome comercial. O material, considerado uma alternativa ao vidro, (leve e resistente a estilhaços) teve uma história fascinante e experimentou uma infinidade de usos diferentes naquele tempo. Hoje, o plexiglas continua sendo utilizado de maneiras novas e interessantes, inclusive com o potencial de ajudar a combater a disseminação do coronavírus. Restaurantes, lojas e outras empresas começaram a usar divisórias como escudos de proteção para trabalhadores e clientes, especialmente quando cidades e vilas vêm reabrindo lentamente. Abaixo, mergulhamos neste material incomum, abordando suas propriedades, sua história e as maneiras como ele segue sendo usado hoje.

Também conhecido como acrílico, vidro acrílico o plexiglas é um termoplástico transparente à base de petróleo tipicamente fabricado em chapas. É um material forte, resistente e leve, com maior resistência ao impacto que o vidro. Também é útil para aplicações externas devido a uma maior estabilidade ambiental do que a maioria dos outros plásticos, como poliestireno e polietileno. Essas vantagens, combinadas com outras propriedades, incluindo alta vida útil, transmissão eficaz da luz e processamento simples, tornam-o uma invenção extremamente útil.

Assim, em 1964, Lourdes Castro, começa a trabalhar em plexiglas, e descobre, por fim, «um material imaterial como as sombras» . Este suporte plástico, sem textura e translúcido permite-lhe dar um novo destaque criativo e auto-suficiente àquele que é já, à data, o tema de pesquisa eleito no seu trabalho. A tridimensionalidade destes “quadros-objetos” permite-lhe explorar as potencialidades da sobreposição entre sombras e cores, o que torna estas marcas de presença, ainda mais fantasmáticas ou intangíveis.

Tudo serve de suporte para as sombras na representação da sua arte: Papel, tela, plexiglass, azulejo, tapeçaria, panos, paredes. Fez serigrafias com as primeiras sombras projectadas, sombras deitadas, sombras à volta do centro, além do teatro. Em 1972, iniciou o grande Herbário de Sombras, na Madeira, com o registo de mil espécies botânicas, sobre papel heliográfico, com etiquetas com o nome científico e com o nome vulgar.»

A revista KWY

Em 1972/73 parte com Manuel Zimbro para Berlim, onde permanece até 1979 ao abrigo da DAAD (Deutscher Akademischer Austauschdienst), local onde aperfeiçoou as suas experiências com o teatro de sombras. Em finais desta década, retira-se de uma vida artística intensa, regressando à Madeira, onde construirá com Manuel Zimbro uma casa e um jardim que assume como “uma pintura de um hectare”.

KWY – três letras que não têm lugar no alfabeto português deram nome a uma Revista (1958-1963), referenciaram a existência de um Grupo (Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, Escada, João Vieira, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo) e deram corpo a Edições (1958-1967)164 . Estas três letras que já por si possuem grandes potencialidades gráficas foram escolhidas não só por razões estéticas, mas principalmente por representarem uma alternativa, um deslocamento que é ideológico mas também física, demonstrando o desejo que o grupo tinha de se assumir como exceção no árido panorama artístico português da época1. Sugerem, deste modo, uma natureza “internacional”, que se carateriza por um espaço que acolhe artistas de todos os países e que admite as mais variadas combinações. Aos dois artistas iniciais, juntaram-se Gonçalo Duarte, José Escada, Costa Pinheiro, João Vieira, o alemão Jan Voss e o búlgaro Christo, com os quais viriam a formar o grupo homónimo.

Refira-se que KWY nada tem a ver com o mito divulgado para o seu pseudo significado (Cá Vamos Indo).

A revista, impressa em serigrafia, durou seis anos, e cumpriu-se em 12 números, por entre colaborações dos seus membros e de muitos outros amigos (pintores, poetas, escritores, críticos e historiadores) com os quais tinham afinidades comuns. Era caracterizada pela experimentação livre de matérias e formas, pela indiferença a ideologias artísticas e por uma procura espontânea de uma outra maneira de conjugar a vida e a arte.

A KWY não é apenas uma “revista de arte”, nem de crítica de arte, nem tão pouco está ao serviço de um grupo orientado por princípios artísticos que nela se reflectiram, sendo um objecto artístico, uma vez que era impressa à mão, tinha tiragens limitadas a umas dezenas de exemplares, misturando-se nela serigrafias originais, fragmentos de objetos (discos, papeis colados, arame), fotografias, imagens de bandas desenhadas, mas também poemas.

Em 1963 e após o lançamento do número 12 (Inverno de 1963), a revista chegou ao fim por decisão unânime dos editores. Este último número – Álbum – organizado por Lourdes Castro, assume-se como evento colectivo, momento de celebração do percurso da revista, nos seus quase seis anos de existência, através da publicação de 54 postais ilustrados com obras de todos aqueles que haviam contribuído para a existência da revista.

A fase Da Arte com Objetos

Depois de passar por uma fase predominantemente informalista e abstratizante Lourdes Castro, desenvolveu uma fase muito particular do seu trabalho. Em 1961 abandona os suportes tradicionais da pintura e passa a dedicar-se a práticas objetuais tridimensionais, explorando a apropriação de objectos e resíduos do quotidiano, trabalhando com objetos comuns, usados no dia a dia, primeiro seguindo uma linha estética associada ao ready-made dechumpiano , onde se apropria de determinados objetos e intervenciona-os , e, mais tarde, através de um processo de assemblage acumulando e ordenando diversos elementos em caixas. O seu atelier é agora um pitoresco depósito de tudo, de milhares de objectos e de restos de objectos, de lembranças de coisas, botões ou pedaços de máquinas de escrever, soldados de plástico ou talheres partidos, garrafas ou estojos antigos, comboios de brinquedo ou passadores de cozinha, uma paleta imensa onde ela vai buscar o que idealiza para compor quadros e colunas, esculturas, ou “anti-esculturas” . O objectualismo de Lourdes Castro surge no momento da redescoberta do dadaísmo, ao qual os Nouveaux Réalistes franceses aderiram, relacionando-se com a apropriação e acumulação de objetos do quotidiano.

A fase das Sombras

Lourdes Castro através das sombras tentou mostrar o espírito das pessoas e dos objetos, tentou ir mais além, uma vez que para ela a sombra era uma espécie de vestígio do que já foi, era “presença de uma ausência” (que é a do corpo) que merecia ser lembrada, contudo as sombras produzidas por Lourdes Castro não nos remetem para a obscuridade, são extremamente positivas e luminosas, revelam-nos a luz dos objetos e das pessoas.

Regresso à Madeira

Lourdes de Castro voltou para a Madeira em 1983, com Manuel Zimbro, e desde o início dessa década desenvolveu a série "Sombras à Volta de um Centro" que ambos prolongaram, recrutando "objetos" da natureza, o sentido reflexivo sobre a temporalidade e o destino da vida, numa interpretação da tradição cultural romântica.

Depois de uma vida longa e intensa, legando-nos um imenso acervo de obras, nas suas várias e múltiplas expressões artísticas, Lourdes de Castro, faleceu ao fim de 91 anos de vida, num percurso exemplar, criativo, pleno de paz e luz, a 8 de janeiro de 2022, na sua terra natal (Madeira), fechou os olhos a este mundo, ao que se sabe, serena e tranquila, para olhar o mundo que sempre sonhou, por dentro, no fundo das coisas, no lugar absoluto da imaginação.

A sua obra multifacetada - das pinturas, às colagens, às sombras, à serigrafia, à tapeçaria, aos azulejos, ao herbário, aos álbuns - expostas um pouco pelo mundo, darão conta, eternamente, na memória dos tempos, da sua personalidade, do seu valor, do seu olhar sereno, marca distintiva da sua arte e do seu empenho, como artista e Mulher, arrojada e vanguardista.

A sua terra natal, a Madeira, cujo mar a inspirava e a relação íntima com a natureza, as suas flores e aromas, num pequeno mundo seu, reconstituído na sua quinta rústica no Caniço, serão o testemunho vivo da sua memória e da sua obra.


* Rui Gonçalves da Silva/fevereiro de 2022/Funchal/Madeira


Imagens da Casa/quinta de Lourdes de Castro/Caniço/Santa Cruz/Madeira: Um sítio, simples, despojado, rústico, com natureza exuberante, uma obra à sua maneira e com a sua marca.

Nota de atualização: Exposição "Como uma ilha sobre o mar: Lourdes Castro/ casa das Mudas/Calheta- Museu de Arte Contemporânea da Madeira - Janeiro 2023

Uma mostra completa e exaustiva da obra de Lourdes Castro, com obras de todas as fases da sua vida artística num repositório amplo e demonstrativo do seu percurso. A curadora desta exposição afirma " Nesta mostra reúne-se, sem a pretensão da evocação antológica da sua obra, e, em jeito de homenagem póstuma, uma seleção de obras e documentos, a que se juntam elementos provenientes do acervo particular da artista" e quanto ao objectivo desta exposição "é homenagear uma figura ímpar da história contemporânea portuguesa transpondo para as paredes deste museu uma leitura transversal sobre o seu percurso e obra plástica".

"Sem se deixar contaminar pela Ilha, Lourdes Castro (1930-2022) encerra em si a essência da terra que a viu nascer, depositando sobre o mar silêncios essenciais que materializavam o seu entendimento sobre a natureza, a luz, a sombra e, particularmente, a sua vida"

A vida e obra de Lourdes Castro está assim impressa/revelada, nos vários trabalhos expostos, representativos da singularidade da sua obra, obra vasta e diversa, de grandes trabalhos, a pequenos detalhes, que a sua arte e sentir, emoldurava-os de cor, sombra e luz, no seu estilo tão seu e único.

Entendemos ao pormenor a sensibilidade e o pendor artístico que foi revelando ao longo da sua vida, em obras, criações, sonhos, deleites, como se levitássemos numa floresta encantada, de fadas, flores e gnomos, luz e sombras, marcos indeléveis da sua vida e expressões da sua alma, genuína, simples, criativa e sobretudo singular.

Rui Gonçalves da Silva/Madeira/Janeiro de 2023