* César Miguel Teixeira da Fonte: Padre e Advogado - uma vida pelas causas justas

*César Miguel Teixeira da Fonte: Padre e Advogado - uma vida pelas causas justas.

 

CÉSAR TEIXEIRA DA FONTE, Padre e Advogado, da Madeira, nasceu na Freguesia do Estreito da Calheta (Calheta) a 29-09-1902 e faleceu em Lisboa, a 18-06-1989. Frequentou o Seminário do Funchal e mais tarde a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Desempenhou funções de Sacerdote nas Paróquias de Câmara de Lobos, Porto Santo, Calheta, Faial e São Roque do Faial. A sua vida está ligada à “revolta do leite” na Madeira, em 1931, tendo sido preso e excluído da sua vida sacerdotal. A partir de 1943 exerceu atividade de advogado em Lisboa, tendo prestado apoio religioso na paróquia de S. Sebastião da Pedreira. Um exemplo de vida, de uma personalidade singular, que urge reconhecer e valorizar, no elenco dos que lutaram e sofreram as agruras do  regime do Estado Novo e que não pode ficar na penumbra e no esquecimento da história.

 

 

Na linha do que venho publicando, neste espaço, de breves apontamentos, de figuras ilustres e distintas da nossa Região (Madeira), faço-o desta feita, evidenciando a vida e exemplo de  um clérigo, que posteriormente exerceu como advogado, que deixou um exemplo de empenho e de defesa de causas justas, particularmente na qualidade de padre/pároco, ao lado do povo rural humilde – simples produtores de leite – que se insurgiram contra o poder central (revolta do leite) numa época de ditadura (Estado Novo),que instituíu o monopólio do sector, em prol dos grandes produtores de manteiga e asfixiando os pequenos criados de gado, numa altura em não era fácil agir na defesa de elementares direitos, dos mais vulneráveis e humildes, do que resultou a vindicta da Igreja e do regime autoritário de então, com a prisão e o impedimento do exercício pleno do múnus eclesiástico, deste nobre padre, homem pacífico e apaziguador, o que não obstou, a que sofresse a repressão da ditadura, com prisão no Funchal e em Caxias.

Estes registos e breves anotações, pretendem enaltecer, vidas marcantes,  esses gestos heróicos e nobres, das injustiças de repressão/opressão do Estado Novo, particularmente com os povos insulares, para que hoje e sempre, fiquem na memória de todos, como exemplos de vida e de coragem, como é o caso deste conterrâneo,padre/advogado César Miguel Teixeira da Fonte, num percurso de vida de 87 anos (1902-1989) seja como padre, destacando-se na Madeira, na Revolta do Leite (1936) e depois como advogado, em Lisboa (1945), na defesa de causas, de opositores e vítimas do regime opressor de então e no apoio e associação a movimentos de católicos progressistas.

Eis, em resumo, os principais marcos da sua vida:

César Miguel Teixeira da Fonte, era natural do Estreito da Calheta, onde nasceu no dia 29 de Setembro de 1902, tendo falecido em Lisboa no dia 19 de Junho de 1989.

Foi ordenado presbítero no dia 24 de Setembro de 1927 e celebrou a sua Primeira Missa, no Estreito da Calheta.

Em 30 de Setembro de 1927 foi nomeado Coadjutor de Câmara de Lobos e, em princípios de Dezembro de 1927, tomou conta da Paróquia do Porto Santo.

Em 1 de Outubro de 1928 foi nomeado pároco da freguesia da Calheta, tendo depois, em 9 de Março de 1930, sido nomeado pároco da freguesia do Faial. Em 1 de Julho de 1934 acumulou a função de Pároco de São Roque do Faial.

A vida decorria na sua normalidade, numa Região, pobre e abandonada pelo poder central, quando o povo começou a insurgir-se perante os desmandos e medidas lesivas, particularmente a partir de 1930, com a revolta da farinha e a revolta da Madeira .A Revolta da Madeira, também referida como Revolta das Ilhas ou Revolta dos Deportados, foi um levantamento militar contra o governo da Ditadura Nacional (1926-1933) que ocorreu na  Madeira, iniciando-se na madrugada de 4 de abril de 1931, mas que não surtiu o efeito desejado, não obstante expressar uma insatisfação latente contra o regime opressor.

Genealogia familiar

O Padre César Miguel Teixeira da Fonte tem as suas raízes na Madeira, particularmente na freguesia do Estreito da Calheta,onde nasceu,  não obstante ter feito grande parte da sua vida ( a partir da sua prisão e exclusão da vida eclesiástica, em 1937) em Lisboa, onde exerceu advocacia e militou em movimentos católicos progressistas, e onde  faleceu em 1989.

Vejamos a sua genealogia familiar:

Não casou, não teve filhos, mas a sua família directa (parentes) integra: 3 irmãos, 7 sobrinhas/o e 8 sobrinhos/netos (salvo qualquer  omissão de registo).

Avós paternos: Manuel Teixeira da Fonte e Maria da Rosa de Jesus

Pais: Francisco Teixeira da Fonte e Maria de Jesus de Sousa.

Irmãos (3): Dr. Francisco Teixeira da Fonte (médico); Luis Teixeira da Fonte (fiscal da Junta de laticínios da Madeira) e José Teixeira da Fonte

Sobrinhos/as (7):

Filhos do irmão Dr. Francisco Teixeira da Fonte:

Maria Olga Teixeira da Fonte ; Francisco Augusto Teixeira da Fonte, casado com Rosemary Brooks Teixeira da Fonte; Maria Estela Teixeira da Fonte, casada com Dr. António Aragão Mendes Correia;  Maria Lídia Teixeira da Fonte Lopes, casada com Manuel Franklin dos Reis Lopes; Maria Zita Teixeira da Fonte, casada com José Alberto Brandão Luiz

Filhos do irmão Luis Teixeira da Fonte:

Noémi Teixeira da Fonte e Lígia Teixeira da Fonte

Sobrinhos/netos ( Filhos das sobrinhas/o (8): 

Filhos de Francisco Augusto Teixeira da Fonte (4) : ( Frank Brooks Teixeira da Fonte; Verónica Brooks Teixeira da Fonte; João Carlos Brooks Teixeira da Fonte e Lídia Brooks Teixeira da Fonte);

Filho de Maria Estela Teixeira da Fonte (1): Marcos Teixeira da Fonte

Filha de Maria Lídia Teixeira da Fonte(1) : Drª Helena Paula Teixeira da Fonte Lopes ( médica);

Filhos de Maria Zita Teixeira da Fonte(2) : Ana Isabel Teixeira da Fonte Luiz e Ricardo Teixeira da Fonte Luiz.

 

 Antecedentes/Revolta do leite

Após as sublevações falhadas de 1931, nomeadamente a Revolta da Farinha e a Revolta da Madeira, o clima de crispação social permanece latente na  Madeira até ao ano de 1934.

Para agravar a situação, surgiu outra medida emanada do executivo liderado por Salazar, a fazer ressurgir o clima de descontentamento face à forma como o governo central dirigia a política económica regional. Após a Revolta da Farinha, que  visava impedir o estabelecimento de um regime de monopólio cerealífero na região, surge, em 1934, um decreto com os mesmos objectivos monopolistas, desta vez na indústria de produção de cana sacarina.

Na prática o novo decreto concedia o monopólio sacarino,  na Madeira, à fábrica do “Torreão”, pertencente a uma família britânica (Hinton), proibindo a construção de novos engenhos até 1953. A laboração do açúcar passava a ser propriedade exclusiva desta empresa, ficando os restantes engenhos da região proibidos de realizar essa actividade. Deste modo, ficava nas mãos de uma só família, o poder de determinar os preços de compra da cana-de-açúcar e aguardente, ao mesmo tempo que era proibida a importação de açúcar e aguardente, apesar do seu preço ser inferior aos praticados na Madeira.

Estes regimes de monopólios, em diversas áreas industriais, contribuíram para agravar as míseras condições económicas e sociais, em que viviam os habitantes doa Região.

 

 A revolta da farinha (1931)

 

A Revolta da Farinha,  decorreu entre o dia 4 e o dia 9 de fevereiro de 1931 na ilha da Madeira, resultou não só de um movimento reivindicatório contra uma medida do Governo da Ditadura Nacional como acima de tudo representou uma sublevação iniciada por populares.

 A 26 de janeiro de 1931, o governo da Ditadura Nacional publicou o Decreto-Lei n.º 19 273, do Ministério da Agricultura, que ficou conhecido como “o decreto da fome”, o qual consagrava  um conjunto de medidas, que visavam a regulamentação do preço do trigo e da farinha em consonância com a “acentuada baixa” de preços nos mercados mundiais. Além disso, os artigos 11.º e 12.º deste Decreto estabeleciam a proibição para a construção de novas padarias ou o aumento de instalações das já existentes, sem a expressa autorização do Ministério da Agricultura.

Como reação a estas medidas, no dia 4 de fevereiro, os comerciantes da cidade do Funchal iniciaram uma greve geral, exigindo a revogação total do diploma. Estes acontecimentos originaram confrontos com as forças policiais, que se prolongaram até 9 de fevereiro e terminaram com a chegada das tropas e do Delegado Especial do Governo da Ditadura, dando ordens de perseguição e consequente prisão aos envolvidos nesta Revolta. Tendo em conta as dimensões que este acontecimento tomou, o decreto foi suspenso.

 A ‘Revolta da Farinha’  representou uma reação popular ao fim do regime livre de importação de cereais e farinha, e à criação do regime de monopólio. Esta medida interrompeu a aquisição normal da farinha e viria a determinar um significativo aumento do preço do pão, componente essencial da alimentação os mais humildes.

A revolta da Madeira (1931)

A operação militar chefiada por Ferreira Camões, leva à prisão das autoridades e à ocupação das repartições públicas. Perante o sucesso do levantamento os militares e políticos exilados aderem ao mesmo, sendo nomeada uma Junta Revolucionária presidida por Sousa Dias. Os revolucionários defendem a restauração da normalidade constitucional suspensa desde a Revolução de 28 de Maio de 1926. Os revolucionários aproveitam-se do descontentamento dos Madeirenses face à situação económica, para obterem apoio popular para fortalecimento da sua posição.

O poder central reage e envia tropas para combater os revoltosos.

No dia 2 de maio, perante a incapacidade de contrariar as forças governamentais, que atacavam por terra, mar e ar, a Junta Governativa da Madeira, reunida no Porto Novo, envia um telegrama de rendição ao ministro da Marinha. Seguir-se-iam represálias de ordem económico-financeira e penas de degredo em África.

 

Os revoltosos cessam a resistência, fugindo para bordo do cruzador britânico HMS London, que se encontrava a proteger os interesses britânicos na Madeira. Os Britânicos, no entanto, entregam o general Sousa Dias e mais de uma centena de militares revoltosos às autoridades portuguesas, que os enviam, imediatamente, para Cabo Verde.

Perante a resolução da situação na Madeira, a 6 de maio os militares revoltosos da Guiné Portuguesa enviam uma mensagem declarando a sua rendição.

 

A revolta do leite (1936)

Quando o governo central promulgou o decreto nº 26 655 de 4 de Junho de 1936, criando a Junta de Lacticínios da Madeira, para, segundo alegado,  organizar o sector, tal medida suscitou uma forte reação popular, que deu origem à chamada “revolta do leite”, pelos receios de que seria criado uma situação de monopólio, ou de domínio das principais fábricas de manteiga, com prejuízos nos rendimentos dos pequenos produtores de leite. Esta revolta, como expressão do descontentamento popular,  começou primeiro pela costa norte e  depois por outros concelhos da Região. A criação de um monopólio na indústria de lacticínios, tal como já se tinha verificado em relação às farinhas e ao açúcar, gerou enorme descontentamento na população, particularmente nos criadores de gado e nos pequenos produtores de leite.

 

 

A indústria do leite/manteiga

Refira-se que a indústria do leite, desde a produção até ao fabrico de manteiga, tinha uma importância económica e social significativa na Madeira de então, como é patente nos seguintes dados :

Em 1936 existiam 60 fábricas de produção de manteiga, 1.108 postos de desnatação do leite, mais de 30 mil vacas leiteiras.

A proliferação de produtores e de fábricas, as condições do circuito da dita fileira leiteira, em termos de higiene e de racionalização, exigiriam, decerto, a necessidade de reorganização do sector, todavia esta deveria ter sido realizada, com a informação e participação de todos os intervenientes,com especial atenção aos pequenos produtores, e não de forma autoritária e repentina como se verificou, com a publicação do novo regime e da criação da Junta de lacticínios.

 

No período de grande depressão na economia insular, o sector pecuário era a principal actividade e a fonte de maior rendimento do Arquipélago - muito superior à produção do vinho, da banana e do açúcar, chegando a exportação a atingir mais de 450 toneladas de manteiga, em 1920, com rendimentos superiores a 7.500 contos, que na época era um montante significativo.
Saliente-se que eram produzidas mais de 840 toneladas de manteiga, grande parte destinada a ser exportada.

(Nota: Mais tarde, em 1965 e 1968, operou-se a reorganização do sector com a criação da empresa ILMA, na qual participavam as empresas (49%) e a união de cooperativas de produtores de leite (49%) e a Junta geral do distrito do Funchal (2%), estrutura que estabilizou o sector, contudo, com com a quebra na produção de leite e de redução de postos,crises financeiras, a ILMA acabou por cessar a sua atividade, em 2013,  num processo controverso de insolvência, pelo que deixou de existir na Região, esta atividade com a anterior dimensão, existindo muito residualmente, na produção de queijo fresco e requeijão.

Desde 2010 que a empresa vinha a acumular dívida com trabalhadores e outros credores e na sequência desta situação financeira, em 3 de setembro de 2013, a assembleia de credores aprovou por maioria, a liquidação da ILMA, levando ao desemprego cerca de 60 trabalhadores.

 

Prisão e exílio -  de padre a advogado

A revolta do leite, surge assim, nesse contexto/conflito de interesses, entre pequenos produtores e grandes empresas, com o apoio a estes, do governo da república.  Na sequência de anteriores situações, no acumular de  medidas lesivas da população mais humilde, o descontentamento ganhou proporções e  instalou-se o protesto e a revolta, com confrontos com as forças policiais e militares, ocasionando, feridos, mortes e sobretudo muitas prisões.

O padre César Teixeira da Fonte, na sua função de pároco colocou-se ao lado dos seus paroquianos, para informar, esclarecer e orientar,  apaziguando os ânimos e tentar junto das autoridades civis, a reversão de tais medidas, atitude que lhe valeu incompreensões e a hostilidade dos corregionários do regime, quer civis, militares, policiais  e religiosos, conotando-o,  intencionalmente  e sem qualquer fundamento,com ideologias revolucionárias (comunistas),contra o Estado Novo de Salazar,  no claro intuito de o prejudicar e banir, como veio a acontecer.

 

O padre César Teixeira da Fonte, acabou por ser  preso, a pretexto (segundo a PVDE) de ter incitado a revolta,  juntamente com  vários populares,  a 11 de Setembro de 1936, sendo enclausurado na  prisão do Lazareto, durante 11 meses, sem direito a defesa e a condições dignas, sendo tratado de forma ultrajante, sem a mínima consideração pelo seu estatuto de clérigo.

No seu todo, verificaram-se 669 prisões, decorrentes destes amotinamentos, dos quais 53 seguiram para os Açores, 117 para a prisão do Lazareto e enviados para Lisboa 141 pessoas ( incluindo 10 mulheres).

A reação dos pequenos produtores - gente simples dos meios rurais, com parcos rendimentos -  mais não eram de que simples protestos, sem motivações políticas, mas de defesa dos interesses económicos, destes pequenos produtores e que pretendiam que o novo decreto fosse suspenso, até que fosse encontrada a solução mais justa e adequada.

O Governo central e os seus representantes locais, não anuíram a qualquer solução, a não ser o cumprimento integral do decidido, até pela razão de não terem boa vontade com a população da Madeira, face aos antecedentes de revolta ( da Madeira, da farinha e do açúcar) e por isso deveria ser mantida e acentuada a ação enérgica das forças da ordem, para reprimir e punir exemplarmente os ditos revoltosos.

 

O Padre César Miguel Teixeira da Fonte, posteriormente seguiu  a bordo do navio “Lima”, transferido para a prisão de Caxias, em Lisboa, e quanto liberto ( após 3 meses) foi aconselhado a fixar-se  no continente e uma vez impedido de exercer as suas funções como clérigo, optou por  matricular-se no Curso de Direito, formação que terminou a 21 de Julho de 1943, a partir do que passou a exercer a advocacia, no qual se distinguiu  na defesa dos mais humildes e de casos de prisões políticas.

 

Após a revolta do leite e como sanção geral ao povo da Madeira, o regime central,  através do decreto-lei nº 26.982 estabeleceu que as despesas resultantes dos motins, seriam pagas (a preços especulativos) com taxas de agravamentos dos impostos, pelos habitantes da Ilha da Madeira, principalmente pelos residentes nos concelhos onde ocorreram distúrbios e destruição de bens. Estas sanções incluíam as custas com a polícia, tropa, marinha bem como a reconstituição das matrizes prediais e totalidade das reparações dos edifícios danificados.

 

 A tomada de posição dos católicos : Relações entre a Igreja e o Estado -Cartas de Fevereiro e Março de 1959

 

Os documentos de 1959, cartas dos católicos denunciando o regime os abusos,  vêm na sequência de  discurso de Salazar, da  alocução natalícia do Cardeal-Patriarca Gonçalves Cerejeira, e da Carta Pastoral do Episcopado.

Em Dezembro de 1958, na tomada de posse da nova Comissão Executiva da União Nacional, o Presidente do Conselho referiu o caso do Bispo do Porto: “considero-o da maior gravidade, não pela perda de elementos que individualmente se afastem da frente nacional, mas pela perturbação lançada em muitas consciências, até agora tranquilas, acerca da legitimidade das suas posições religiosas e políticas”.

O Patriarca, por seu lado, no discurso de Natal, responde indirectamente à hipótese que Salazar levantara nas suas palavras de poder estar-se a afectar a Concordata: “é legítimo dizer que é a ordem espiritual que julga a temporal e não vice-versa”. Evitando usar a palavra Concordata, prefere referir os fundamentos da Constituição (doutrina e moral cristãs) e tecer considerações sobre o Reino de Deus e sobre os perigos do laicismo.

 Em Janeiro de 1959, é divulgado um documento assinado pelos bispos, sobre a presença da Igreja e as relações com o poder político, sobre a Acção Católica (AC) e sobre a inauguração do monumento ao Cristo-Rei,  invocando a doutrina de S. Paulo, segundo a qual o poder das autoridades legítimas vem de Deus, havendo uma homenagem dos bispos ao poder civil representado pelo Chefe de Estado recém-eleito. No entanto é referido  que os cristãos têm toda a legitimidade de participar no “trabalho histórico da construção do mundo à luz do mundo e à luz do Evangelho”, desde que recorrendo a “processos cristãos”, isto é, “na ordem e na paz”.

Quanto à AC, a Carta Pastoral evoca que os seus membros “podem livremente dissentir nas opções temporais legítimas, actuando “naquele trabalho de ordem temporal, isto é, político, económico, social e cultural, em seu nome pessoal, sob a sua exclusiva responsabilidade, sem mandato nem representação da Acção Católica e portanto da Igreja”.

 

No primeiro documento, com  43 subscritores, entre os quais seis padres (Abel Varzim, Adriano Botelho, António Jorge Martins, César Teixeira da Fonte, João Perestrelo de Vasconcelos e José da Costa Pio) e diversos leigos, entre os quais Alberto Vaz da Silva, A. Alçada Baptista, Domingos Megre, Fernão Pacheco de Castro, Francisco Lino Neto, Francisco Sousa Tavares, Gonçalo Ribeiro Teles, Manuel Serra, J. Bénard da Costa, João Camossa, João Gomes, José Escada, Manuel de Lucena, M.S. Lourenço, Nuno Teotónio Pereira, Orlando de Carvalho, Sophia de Melo Breyner Andresen ) parte das considerações de Salazar e analisa-as criticamente, colocando-se ao lado do Cardeal Cerejeira quando este diz “é legítimo dizer que é a ordem espiritual que julga a temporal”, caso contrário seria “abrir caminho para o totalitarismo”.

Quanto ao Bispo do Porto, este limitou-se exclusivamente à sua missão como “autoridade da Igreja”, pelo que merecia solidariedade.

No que se refere à Carta Pastoral, havia que questionar as repercussões políticas da referência ao Chefe de Estado, podendo dizer-se: “Se fosse chamada a atenção para o princípio cristão, não menos solidamente estabelecido, de que compete aos governantes respeitar as liberdades fundamentais de todos os cristãos, esse facto teria também repercussões políticas de sentido inverso”.

Quanto à AC, não deveria ser esta vista no plano puramente cultural, pois havia um dever de “impregnar o mundo de doutrina cristã”: “o que é lamentável é que se considere fazer política, neste como noutros domínios, adoptar um ponto de vista que não seja exactamente o fixado pelas autoridades governamentais”.

Assim os signatários diziam ter “sérias razões para julgar que o actual regime descura aquele mínimo respeito pela justiça e pelas liberdades fundamentais dos cidadãos, sem o qual se deve por em dúvida o seu acordo com a doutrina cristã”.

O documento de 1 de Março reuniu 45 assinaturas e abordava situações concretas que ilustravam os métodos repressivos do regime e da polícia política “que uma consciência humana bem formada não pode tolerar e um espírito cristão tem necessariamente de repudiar”.

 Este texto teve grande difusão, sobretudo externa, até por se tratar de um conjunto de denúncias concretas (torturas, mortes, violências).

 

 

Apesar da sua exclusão da vida eclesiástica, o Padre Dr. César Miguel Teixeira da Fonte, em Lisboa, ficou adstrito ao serviço da Igreja de São Sebastião da Pedreira, onde apoiava como voluntário o serviço religioso e  a par das suas funções religiosas, a partir da sua formatura em Direito, exerceu simultaneamente a advocacia, procurando fazer dela um apostolado, interessando-se muito pelas causas dos pobres e por assuntos jurídicos relacionados com a vida eclesiástica de muitas paróquias do Patriarcado. Pela sua “acção intrépida, inteligente e zelosa e, ao mesmo tempo, pela sua delicadeza que o tornava estimado, fez muitos amigos e admiradores que não o esquecem”.

Era, segundo consta, um padre/cidadão/advogado, livre no pensar e no agir. Diante das necessidades e injustiças, coloca-se ao lado dos injustiçados e com eles vai até às últimas consequências. Dizem os seus familiares, que por causa do sofrimento e da injustiça que passou nunca mais pronunciou o nome Salazar, porque “lhe sujava boca”.

 

 Padre César Miguel Teixeira da Fonte /Padre  Felicidade Alves

 

Existe, de algum modo, um certo paralelismo, na vida, no percurso e na condição, entre estes dois religiosos, ambos excluídos do sacerdócio,  e ao que consta “a dada altura do seu percurso, no pós 25 de Abril, faz uma inflexão para posições políticas próximas das de Felicidade Alves - in a Revolta do leite /João Abel de Freitas pg. 124.

Eis o essencial a vida do Padre Felicidade Alves:

 

“Cidadão de uma enorme coragem, o Padre Felicidade (como era conhecido também nos meios antifascistas não católicos), foi uma das figuras centrais da oposição dos católicos à ditadura, sobretudo a partir de meados da década de 60.

Nas suas homilias abordava temas incómodos ao regime do Estado Novo e às hierarquias eclesiásticas, tais como a guerra colonial, a perseguição política e problemas sociais. Envolveu-se militantemente nos combates contra a Ditadura e na renovação da Igreja Católica, o que determinou a sua prisão e julgamento. Foi afastado das funções de pároco pelo então cardeal patriarca de Lisboa, Cardeal Cerejeira e, mais tarde, tomou conhecimento da sua excomunhão”.

José da Felicidade Alves nasceu em 11 de Março de 1925 em Vale da Quinta, freguesia de Salir de Matos, Caldas da Rainha, sendo filho de Joaquim Alves e Maria Felicidade.

Em 1956 foi nomeado pároco de Santa Maria de Belém, em Lisboa, onde se evidenciou pelo conteúdo das suas homilias. Foi no trabalho da paróquia que se foi dando conta de que o país real era muito diferente do que pensava e, a partir de 1967, as suas intervenções começaram a causar incómodo ao regime e à Igreja Católica.

Solidário com o grupo de católicos mais progressistas, o percurso de Felicidade Alves ficou definitivamente marcado após a comunicação que proferiu ao Conselho Paroquial de Belém, em 19 de Abril de 1968, na presença de muitas dezenas de pessoas.

Sob o tema «Perspectivas actuais de transformação nas estruturas da Igreja», a comunicação de Felicidade Alves punha em causa a forma como a Igreja se apresentava à sociedade, a sua organização, e o modo como eram transmitidos os ensinamentos cristãos e era abordada a própria figura de Deus.

Defendendo uma profunda renovação da Igreja e das suas estruturas, as ideias de Felicidade Alves desagradaram ao cardeal Cerejeira. Em consequência, foi-lhe movido um longo processo que determinou, em Novembro de 1968, o afastamento das suas funções de pároco em Santa Maria de Belém, e, mais tarde, a suspensão das suas funções sacerdotais, terminando, em 1970, com a sua excomunhão.

 

 “Não podemos esquecer esta figura da Igreja e nem permitir que a Igreja se aliene e silencie estes homens nobres que souberam assumir riscos sem olhar a consequências, no que diz às opções que assumiram em favor do povo. (Padre José Luis Rodrigues)

 

Conclusão

 

Neste breve apontamento, pretendemos evocar a vida, o percurso, as vicissitudes, deste conterrâneo, de quem conhecemos e lidamos com alguns dos seus familiares, para enaltecer o seu exemplo, marcado sobretudo pela sua participação na Revolta do leite, esse movimento popular  ocorrido na Madeira, contra a prepotência do regime do Estado Novo, movimento que levou muitos à prisão arbitrária, de pacatos camponeses, simples produtores de leite, tantos anónimos que a história esqueceu, sobretudo esse grupo de dez mulheres, que sofreu na prisão do Funchal e depois na prisão em Lisboa, sem cometerem qualquer crime de lesa pátria, a não ser erguer a voz a reivindicar os seus mais elementares direitos.

Estas mulheres foram alvo de "tratamento especial" por parte do regime, com transferência para o Continente, julgamento e condenação em Tribunal Militar Especial e posterior cumprimento de pena de prisão na "Cadeia das Mónicas", em Lisboa: Ludovina de Jesus da Corte, Agostinha da Câmara, Francisca Andrade, Maria de Jesus Silva, Maria Rosa de Abreu, Maria de Jesus Andrade,Conceição da Câmara Rodrigues, Tereza da Corte, Virgíniade Jesus e Maria de Souza.

Pela sua coragem, pela sua luta por melhores condições de vida e contra a prepotência e pelo sofrimento e degradação a que foram submetidas, estas mulheres merecem, assim, também a justa homenagem e reconhecimento que lhes é devido. ( A  Assembleia Legislativa Regional, pela Resolução nº 18/2023 prestou homenagem a estas mulheres,  na qual  não foi  incluído, de forma inexplicável,  o Pe. César Teixeira da Fonte)

 Fica a a homenagem a todos os intervenientes e vítimas desta revolta, com especial destaque ao Padre César Miguel Teixeira da Fonte, como referência desta luta, mais de oitenta anos decorridos desses acontecimentos, pela sua vida de valor e coragem e pela defesa dos mais humildes, sejam os seus paroquianos, como depois, os que defendeu na barra dos tribunais, contra as injustiças e arbitrariedades, que o distinguem na  defesa  dos valores e dos excessos do regime do Estado Novo e no elenco dos precursores de uma igreja católica fiel aos princípios dos textos fundamentais, ao lado das pessoas e  das suas esperanças e que por isso não pode ser esquecido.

 

* Rui Gonçalves da Silva/ Funchal/Madeira/Julho de 2023

 

Bibliografia - Arquivo Regional da Madeira/ A revolta do Leite- João Abel de Freitas/A revolta do leite- Rui Nepomuceno/ Élvio Passos-DN de 31 de julho de 2022/Relatório autógrafo sobre a prisão dum padre católico.

"Presos Políticos do Estado Novo/Élvio Passos/João Lizardo"